Foi em 1981. Eu tinha 11 anos. Tento em vão que o meu cérebro digira esta realidade assustadora. Passaram 26 anos. Não diria que parece que foi ontem. Mas anteontem, certamente. Quando me lembro ainda me arrepio. Claro que a possibilidade de ouvir a gravação (daquilo de que estou a falar, claro) permite refrescar a memória das células. Embora conste que já não são as mesmas. Mas isso é outro assunto. Portanto, adiante.
Foi, pois, em 81. Aqui mesmo ao lado, no Teatro Aberto, na Praça de Espanha. O dito teatro não ficava, como hoje, na Avenida Gulbenkian, como quem vai para a Av. de Berna, mas antes do outro lado da praça, como quem seguisse em direcção ao Hospital de Santa Maria. Isso agora também não interessa nada, como diria a Teresa Guilherme, mas os inúmeros e incontáveis já sabem como sou e o quanto gosto de me perder em pormenores, tipo janela barroca e o que vale é que depois a janela abre e fecha e veda na mesma, e dá para uma qualquer paisagem e, a bem dizer, podia dar-me para pior, que era esquecer-me ao que ia, ou neste caso vinha.
Os meus pais sempre me levaram para estas coisas, e diga-se de passagem que era mais por influência do meu pai que da minha mãe.Tratava-me como se eu fosse mais crescida do que na realidade era e agradeço-lhe o ter-me assim proporcionado momentos que trago comigo, agarrados à pele e aos ossos e que fazem parte de mim, indissociáveis do que sou, ou pelo menos julgo ser... Naquela noite, o programa era o espectáculo do José Mário Branco. 'SerSolid(t)ário'. Não era imensa, a audiência, que o teatro não levava uma multidão. Mas era suficiente para encher a sala e formar um todo,do qual se desprendia sopro, consistência, vibração. E sei que, apesar dos meus 11 anos, aquilo que senti a determinada altura não foi exclusivo meu, da minha ingenuidade, da inocência que trazia, muito inferior, diga-se, à de muitos 11 anos que por aí vejo. Não sei se feliz, se infelizmente, mas também isso são outros assuntos, e tantos haveria para trazer ao 'Nada...'...
E 'às páginas tantas', diz assim o Zé Mário: "Vou-vos mostrar mais um pedaço da minha vida, um pedaço um pouco especial, trata-se de um texto que foi escrito, assim, de um só jorro, numa noite de Fevereiro de 79, e que talvez tenha um ou outro pormenor que já não seja muito actual. Eu vou-vos dar o texto tal e qual como eu o escrevi nessa altura, sem ter modificado nada, por isso vos peço que não se deixem distrair por esses pormenores que possam já não ser muito actuais e que isso não contribua para desviar a vossa atenção do que me parece ser o essencial neste texto. Chama-se FMI.Quer dizer: Fundo Monetário Internacional. Não sei porque é que se riem, é uma organização democrática dos países todos, que se reúnem, como as pessoas, em torno de uma mesa para discutir os seus assuntos, e no fim tomar as decisões que interessam a todos... É o internacionalismo monetário..."
E foi assim que assisti à primeira (e única??) apresentação (demorei um pouco a achar esta palavra e, embora não me pareça a ideal para definir o que foi 'aquilo', talvez seja a única que eu consiga achar neste momento, por isso aqui ficará a não ser que entretanto me surja outra mais adequada...) ao vivo desse texto e até hoje, a cada vez que me lembro, sinto-me grata. E muitas outras coisas, mas não sou menina para repetir adjectivos, apesar do meu já bem conhecido pendor para o alongamento verbal. E sei que, naqueles longos minutos, as confusas e variadas emoções que emergiram no meu ser foram de uma intensidade brutal e inesquecível. Sei também que algumas delas foram partilhadas com a restante plateia. O às tantas não saber se o homem 'se tinha passado' (nessa altura não se usava tal expressão), e se aquilo faria mesmo parte do que estava previsto. O sentir que estava ali a mais, frente a um homem com idade para ser meu pai que se estava a 'desmanchar' diante de 300 pessoas, para lá de todo o pudor, de toda a contenção. O riso e o espanto. A desmesura.
Ando há dias com este poema fabuloso no ouvido. Passaram 26 anos(!!!). 28 desde que foi escrito. Mas mudássemos-lhe nomes e pormenores e poderia ter sido escrito ontem. Anteontem. Amanhã.
Inúmeros e incontáveis. Se não conheceis, lede. E ouvide. Se não conheceis, idem. (Espero que esteja em óptimas condições. Não tive ocasião de ouvir tudo, que ainda me punham na rua por acto subversivo no local de trabalho. E já se se sabe, o precariado tem de manter low profile. Very, very low...)
Acrescento: Ando a cozinhar esta posta há uma semana. E o FMI às voltas na minha cabeça. Sempre e sempre. Mas da posta perdeu-se muita coisa pelo caminho. Vou-me lembrando, à medida que leio e releio o texto, que tem algumas imprecisões em relação à gravação. Pedaços que tomam um significado cada vez maior. Como: "(...) Sempre a merda do futuro, a merda do futuro, e eu ah? Que é que eu ando aqui a fazer? Digam lá, e eu? José Mário Branco, 37 anos, isto é que é uma porra, anda aqui um gajo cheio de boas intenções, a pregar aos peixinhos, a arriscar o pêlo, e depois? É só porrada e mal viver é? O menino é mal criado, o menino é 'pequeno burguês', o menino pertence a uma classe sem futuro histórico... Eu sou parvo ou quê? Quero ser feliz porra, quero ser feliz agora, que se foda o futuro, que se foda o progresso, mais vale só do que mal acompanhado, vá mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa, filhos da puta de progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos!"(...). Passaram 26 anos que o ouvi despejar isto. 28 que ele o escreveu. E hoje, quem tem 37 anos sou eu. E nunca como hoje senti este texto tão meu.
11/29/2007
FMI (Foi Muito Intenso) ou mais uma Crónica da Outra Vida
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9 comentários:
apetece-me imprimir e colar na porta do meu gabinete.
Emocionante.
Genialmente eterno e actual.
São assim as palavras verdadeiras.
Rio-me ou choro? Torrente potente, passo a rima. Já não bastava os jogos de palavras, que tanto dizem. As ideias. As ideias ainda servem. O cantor/poeta sem dentes, tão filho da puta como tantos outros filhos da puta que defendem e gostam do País. Ou já não gostam. Ou já não conseguem gostar. Aqui há dias, disse-me um colega, reflectindo esta vaga pidesca que por aí galopa: "Já não me atravesso por ninguém. Cada um por si. Para quê? Eles querem intimidar-nos de propósito. Já demitiram dois para nos meter medo". E eu disse-lhe: "Dá-lhes poder, aos patrões, dá. Dá-lhes ainda mais poder para nos terem no medo, no fio da navalha. Se um colega não te defender quando precisares, em nome do que é justo, quem te defenderá? Não te atravessas por ninguém? Eu ainda atravesso. Porque, realmente, não tenho nada a perder".
*Espero não ter sido muito confusa.
Tua Luz, grávida, mãe, remediada, mas ainda filha da puta qb.
**Imagino-te, pequenota, a despontar, já mais madura do que muitos, a levar com essa lição. Ficaste sem respirar, por momentos, não? E a audiência como vibrou... imagino.
Luz
Não conhecia, assustadoramente actual. Obrigado Calamity, de vez em quando preciso de uma "abanadela" como esta.
Um beijo
De génio!
Miúda, atão e a comezaina de Natal com os bloggers nacionais e internacionais que amamos?
Dá notícias. dmalaia@yahoo.com
Somos brandos, seremos sempre brandos, CJ.
Veremos sempre tudo numa clivagem: eles o e nosso líder, que agora não temos, mas precisamos, urgentemente.
Não vem a propósito, mas hoje anunciam que o saco de plástico do supermercado vai passar a custar dinheiro. Não custa já?
Quem não vai ao supermercado, quem se está cagando para esses ninharias passa-lhes ao lado. Lá vêm os pobres, mais económicos e cultos, a saber aprender das coisas do ambiente, mas pagando se se esquecerem, Toma!, eles e elas, carregados e derreados até à medula e pagantes. E acham também que foi bem feito. Que quem gasta o ambiente deve pagar. Juntam-se todos em uníssono. Mas nada de fraternidades. Isto é tudo uma palhaçada, CJ. As palavras do JMB, hoje, ainda dão pano para mangas.
LINDO!!!
Emocionou-me sempre que oico...
Engracado que a mim tambem me faz lembrar a infacia; os domingos de manha, em casa dos meus pais, eram reservados a musica e o ze mario branco era um habitue...
A um sitio onde costumo(costumava
:(( ir, em evora, na noite de 24 pra 25 de abril onde um miudo (novo, 20 ou 21 anos) todos os anos declama (canta, interpreta, sente, sei la ...) o FMI.
A mim da-me muita raiva que seja um
texto tao profundamente actual.
PORTUGAL CADA VEZ ME PARECE MAIS UM PAIS PEQUENO-BURGUES (com tudo o que isso tras a reboque). se calhar sao so os meus olhos de emigrante :)
bjos e venha la essa janta :))
(qual e o dia? 26?? 27??
27 acho que tenho de ir para o Alentejo, ainda nao tenho a certeza...)
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