1/31/2008

Carta

Ao Exmo Senhor que se Encontra lá nas Alturas
(creio que no 457-C)

Venho por este meio solicitar-lhe se digne enviar-me alguma iluminação divina que não lhe faça falta ou, na impossiblidade de o fazer, que encarregue um dos seus angélicos funcionários de entrar em contacto comigo ou ainda, caso também esta solução viesse causar transtorno, que me faça chegar documentação explícita no sentido de esclarecer-me sobre a situação que passo a expor:

Desde que me lembro de ser gente tenho tentado ser gentil e justa para com os meus semelhantes e inclusivamente para com alguns dos meus diferentes. Refiro-me a cães, gatos, tartarugas e borboletas, enfim, à maioria dos animais nossos amigos, embora deva confessar que ainda não atingi o nível de progresso espiritual que me permita optar pelo vegetarianismo a tempo inteiro. Admito também ter, em noites de Verão, atentado contra a vida de uma outra melga que insistia em sugar o meu tão precioso líquido sanguíneo, tão necessário à minha sobrevivência, para além de privar-me das minhas tão necessárias horas de repouso, essenciais ao meu residual equilíbrio psicológico.

Contudo, e apesar desses episódios deploráveis da minha existência pelos quais desde já me penitencio, esforço-me todos os dias para evoluir tanto no meu âmago quanto na relação com o que me rodeia e penso sinceramente que não me tenho portado muito mal. Diria também que, mesmo em tempos em que não era tão atinadinha, nunca agi de molde a prejudicar quem quer que fosse e se porventura alguma vez o fiz, foi certamente sem intencionalidade, fruto de alguma imaturidade, inconsciência, ou incapacidade de medir as consequências dos meus actos. Estou certa porém, de que jamais causei dano de maior. A cada vez que me comportei de forma leviana, irresponsável ou inconsequente, fui invariavelmente eu e só eu a arcar com os prejuízos das minhas acções, exceptuando talvez uma ou duas vezes em que magoei os que mais amava, como os meus pais, mas acredito que todos os filhos o fazem, num momento ou outro do seu percurso pelos tortuosos caminhos do crescimento. Estou em crer que o Senhor não iria querer acertar contas comigo devido a um ou outro pequeno desvario próprio da idade, que eles mesmos já me perdoaram há décadas atrás e pelos quais julgo já ter pago a minha dívida.
É por tudo isto, Senhor, que venho, com toda a humildade e respeito que devo a V/ Alteza Majestosa, perguntar-Vos, o que raio fiz eu para merecer isto?

A resposta, como já referi acima, poderá ser-me facultada pela via que V/ Eternidade Divina julgar mais apropriada, pois, modéstia à parte, V/ Bondade Celeste logrou brindar-me com apreciável QI, pelo que penso ser capaz de atingir mensagem de carácter subliminar, caso V/ Essência Etérea opte por esclarecer-me via sonho, visão ou viagem astral permitindo insight sobre a vida anterior, dado que me parece evidente, dados os factos expostos no parágrafo anterior, situar-se aí a razão para este meu Karma, o qual me vem acompanhando já há umas décadas valentes.
Agradecia também me fosse outorgada, naturalmente na ocasião considerada adequada por V/ Altura Inatingível, informação relativa ao prognóstico da situação acima exposta. Trocando por miúdos: Até quando, Senhor, durará este meu castigo?

Sem mais de momento, na expectativa da V/ Mui Prezada e Sempre Oportuna resposta

Subscrevo-me com todo o respeito, consideração e estima que me é possível na minha posição de mero e insignificante ser humano e pedindo desde já as mais humildes e esmeradas desculpas pelo tempo que possa ter usurpado a V/ Elevadíssima Agenda

Calamity Jane

1/27/2008

Posta à mão (ou elocubrações desmesuradamente longas às quais os inúmeros e incontáveis devem evitar a todo o custo lançar-se

a não ser que se considerem inelutavelmente tão desvairados quanto a sua desvairada autora. Ós pois não digam que não avisei!)

A posta you're about to read (adoro esta expressão, estar 'about to', e qualquer tradução que lhe tentasse substituir resultaria, quanto a mim, sempre aquém do original) foi escrita duas vezes, ou seja, foi primeiro escrita em papel (diga-se de passagem que sentada diante de uma paisagem magnífica, sobre uma relva verdejantemente fresca e sentindo a carícia morna de um sol delicioso) de modos que vou já avisando os inúmeros e incontáveis que, se chegaram até aqui, seria, no mínimo, simpático que não se deixassem assustar com o comprimento da mesma (e, já agora, nem pelo das frases que a compõem, com as quais tenciono desafiar Saramago a um despique assim que o senhor melhore e saia do hospital...), uma vez que tive de me dar ao trabalho de a reescrever inteirinha no computador (assim como aos múltiplos acrescentos que foram entretanto surgindo na minha insuportável mente hiperactiva), sendo que o seu primeiro 'parto' representou para mim um exercício bastante intenso e diria até de teor quase inovador, já que não o fazia há largos meses. Refiro-me ao de escrever à mão.

Escrever textos, claro está, pois que todos os dias utilizo todas as canetas que me possam aparecer pela frente para escrevinhar nos mais diversos suportes números de telefone, endereços de email, listas de faltas, recados para mim própria, lembretes e apontamentos vários, dos quais resultam uma infinidade de papéis os quais, por sua vez inundam a pouco e pouco a minha existência e, um belo dia, acabarão, eu sei, por me submergir, se tivermos em conta que sou absolutamente incapaz de os deitar fora, quer bem se trate de uma lista onde se encontram rabiscadas as palavras "cebolas, papel higiénico, leite do dia, yogurtes naturais" (ou melhor "cebs, pap hig, leite dia, yogs nats), quer de um poema que representou o que de melhor fiz nas últimas décadas e que, por incrível que pareça, permanecerá talvez guardado ao pé da referida lista de abreviaturas de compras para fazer no supermercado antes que a minha casa e a minha família resolvam expulsar-me por incomprimento até ao dia, quiçá daqui a dez anos, em que eu resolva arrumar aquele específico monte de papéis do qual serei eventualmente capaz de colocar no papelão as contas da água e luz e mesmo assim só o farei se me aperceber que, fossem elas processos judiciais por crimes graves já teriam prescrito. (ufa! que até a mim me canso!)

Escrever à mão. À medida que o tempo passa verifico que cada vez menos o faço. Algo que pratiquei sempre com uma frequência incerta (embora desde sempre me lembre a escrever por dentro da cabeça, escrever sempre, a andar na rua, a conduzir o carro, nos transportes públicos, na fila da repartição, no jardim com os putos, no elevador, onde quer que seja) mas que mesmo assim ia fazendo, fui fazendo sempre, embora de forma diferente daquela - rara - em que o faço nos dias que correm.

"Dias que correm". Detenho-me por momentos nesta expressão e apercebo-me de repente onde reside o seu verdadeiro significado, talvez o motivo pelo qual hesitei antes de o escolher em detrimento de outro sentido aproximado como "na actualidade" ou "hoje em dia" ou mesmo "presentemente". Presente mente... "Presentemente" também mereceria uma aprofundada reflexão. Dedicarei noutra ocasião mais atenção a ambas as formulações. Ou talvez não.

Retornemos, pois, à questão que me ocupava no presente momento (olha, outra!, se bem que não é nada a mesma coisa. Adiante).
Dizia eu então - se é que nesta altura do campeonato ainda resta um único de vós, inúmeros e incontáveis, a passear os olhos estafados da esquerda para a direita e de cima para baixo, exasperando-vos na espera inglória do momento, quem sabe em vão pois poderia muito bem nunca chegar, do momento, pois, em que aqui a desvairada da Calamity se decida a ir directamente ao assunto, ou deveria eu antes dizer, a ir ao assunto tout court, já que o advérbio "directamente" representa aqui o contra-senso em todo o seu esplendor - dizia eu então para os sobreviventes desta mui cansativa e interminável prosa, que hoje em dia raramente me dedico a escrever à mão, o que, definitivamente, é um exercício substancialmente (de substância, mesmo) diferente de escrever num teclado de computador. E apercebo-me de que o faço de forma também ela diferente. Diferente do que fazia antes, digo. Antes do blog.
À pressa, gatafunhando. Não desenhando as letras com algum esmero (embora sempre tenha tido uma caligrafia bastante grave) como o fiz ao longo de muitos e muitos anos, gostando de escolher para o efeito a caneta e o papel. (Mesmo que, em caso de pânico, qualquer coisa servisse para o efeito, e muitas vezes tive de lutar contra o espaço exíguo deixado livre por um extracto bancário ou depois de ocupados ambos os lados de um guardanapo de papel, ou ainda, já cheia a prata do maço de tabaco assim como as margens do pacote...).
Que beleza, um caderno todo preenchido de letras, letras escritas com amor, com raiva, com tinta feita de emoções. Pensamentos que ganham dimensão, textura gráfica!
E, por outro lado, quantas promessas nas páginas virgens de um caderno em branco. Com linhas, quadriculado, naquele magnífico papel 'Seyès' dos franceses, semelhante a uma partitura, pronto a ficar repleto de maravilhosas palavras, prodigiosos verbos, advérbios, gerúndios e particípios, todos ligados entre si por divinas partículas, conjunções, preposições, e artigos. E pontos, muitos, muito pontos. Pontos de exclamação, de interrogação, reticências e ponto e vírgulas. Caracteriais ponto e vírgulas. Ou será pontos e vírgulas?

Postar para o papel antes de o fazer para o teclado. Recuperar aquela noção de escrever para si próprio. Guardar na gaveta os cadernos cheios de mim e nunca os revelar. Mantê-los fechados, tinta e papel coladinhos num casamento daqueles à mete-nojo, sempre tão juntinhos, tão íntimos que nunca nada nem ninguém os pode sequer adivinhar.
Que invenção fabulosa, esta possibilidade de escarrapachar as divagações que, durante séculos a fio, permanecerem no recato sepulcral dessas folhas agrupadas, encerrando entre si a própria essência dos seus autores. E, ao mesmo tempo, que perda irreparável se, de repente, deixássemos de os usar, os tais cadernos paulausterianos, de cuja maciez, densidade e aparência podia depender o teor de um texto, o seu âmago. Um pouco como os poemas gráficos, uma obra tridimensional, por assim dizer… Não estaremos nós paradoxalmente a condenar os nossos escritos a uma existência puramente ‘no plano’ quando os lançamos para a aparente multidimensionalidade da blogosfera?

(to be continued)

1/22/2008

A minha blogosfera é melhor que a tua!

Hoje acordei com esta frase na cabeça. Imediatamente soube a quem ela se destinava. Claro que não era para nenhum de vós, inúmeros e incontáveis! A vossa blogosfera é igual à minha. Uma caixinha de surpresas. Recheada de pessoas bonitas, que foram entrando na minha vida devagar mas hoje ocupam um espaço real, palpável e que transcende largamente as fronteiras do virtual (seja lá o que isso for - terá a virtualidade fronteiras?). Mas a blogosfera não pára de me surpreender. A sério. E sempre pela positiva. Não consigo lembrar-me de uma única pessoa que tivesse conhecido por via deste universo fantástico e que me tivesse desiludido. E mesmo quando, por motivos vários, não entro em contacto directo com os bloggers, fico sempre pasma com o espírito de partilha, solidariedade e entreajuda com que me deparo sempre que, por algum motivo, recorro à blogosfera. Por vezes, não posso (ou não quero) dizer nada, mas fica a roer-me o bichinho. É um grilo cá dentro que diz: "Vá, denuncia-te! Diz quem és! Diz que pertences!". Pertença. Fazer parte de. É isso que a minha blogosfera me faz sentir. De certa forma possuímos algo em comum, que é só nosso e que nos une.
Da minha blogosfera sempre recebi ânimo, calor e carinho. E até a blogosfera que não sabe que é minha me correspondeu quando solicitada com uma resposta cordial, agradável e simpática, no mínimo.
A minha blogosfera é um mundo novo. Talvez seja este o início da Utopia. Uma terra sem amos, a Internacional...

De facto, a minha blogosfera, sôdona Margarida Rebelo Pinto, não tem nada a ver com a sua. A Calamity nunca poderia ter escrito, como a senhora:
"Os blogues são um território de guerrilha suja, protagonizada pelos terroristas da Internet"
Talvez seja por isso que a Calamity ainda não passou da cepa torta, e a senhora colecciona best-sellers. Mesmo assim, prefiro ser a Calamity. É que, sabe, sôdona Margarida Rebelo Pinto, a minha blogosfera é mêmo, mêmo, bem melhor que a sua, sei lá!

Sim, eu sei que isto já foi há uns meses largos, e até suscitou posta na minha blogosfera (desculpa, Azulinha, não consigo colocar o link exacto, mas, para quem lá for, é a 4ª posta, a contar de cima...), mas, o que é que querem?.. só hoje me ocorreu... Desculpem lá se já vou atrasada...

1/15/2008

Espalhem a notícia

Espalhem a notícia
do mistério da delícia
desse ventre
espalhem a notícia do que é quente
e se parece
com o que é firme e com o que é vago
esse ventre que eu afago
que eu bebia de um só trago
se pudesse

Divulguem o encanto
do ventre de que canto
que hoje toco
a pele onde à tardinha desemboco
tão cansado
esse ventre vagabundo
que foi rente e foi fecundo
que eu bebia até ao fundo
saciado
Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo de mim vou ao fundo do mar
vou ao fundo do mar no corpo de uma mulher
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher bonita

A terra tremeu ontem
não mais do que anteontem
pressenti-o
o ventre de que falo
como um riotransbordou
e o tremor que anunciava
era fogo e era lava
era a terra que abalava
no que sou

Depois de entre os escombros
ergueram-se dois ombros
num murmúrio
e o sol, como é costume,
foi um augúrio de bonança
sãos e salvos, felizmente
e como o riso vem ao ventre
assim veio de repente
uma criança

Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo de mim
vou ao fundo do mar
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
bonita

Falei-vos desse ventre
quem quiser que acrescenteda sua lavra
que a bom entendedor meia palavra basta,
é só adivinhar o que há mais os segredos dos locais
que no fundo são iguais
em todos nós

Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo do mim
vou ao fundo do mar
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
bonita

Sérgio Godinho
in Canto da Boca

Bem Vinda Princesa Clara

1/14/2008

O Segredo

Admito que sou cusca. Sempre fui. Por natureza e também por (de)formação profissional. Herdei a característica do meu pai e já a transmiti ao meu filho. Safa-me o facto de não usar os conhecimentos obtidos por meios pouco ortodoxos para prejudicar ninguém e até devo ressalvar, em abono da verdade e da minha pessoa, que, por vezes, me vejo bem à rasca com informações que me vêm parar às mãos (ou aos ouvidos, ou ainda, aos olhos) e que não era suposto eu saber. Acresce que tenho uma vocação inata para esbarrar de nariz nas coisas mesmo sem andar à procura delas.

Adiante. Sou cusca, portanto. E como tenho uma relação de obsessivo-compulsiva com a leitura, tenho uma mania muito feia que é ir nos transportes públicos a partilhar as letras dos vizinhos mais próximos sem para tal ter sido convidada. Qualquer coisita serve, desde os pasquins gratuitos até à 'Crítica da Razão Pura', mesmo que na sua versão original - e isto apesar de não falar nem escrever mais do que quatro palavritas na língua de Kant.

Vem isto a propósito do meu curto trajecto de autocarro de hoje. A velhota teria pelo menos uns oitenta anos. Trazia nas mãos um livro forrado a papel de embrulho de boa qualidade, acastanhado. Folheava-o nervosamente de trás para a frente e da frente para trás. De vez em quando detinha-se numa página e lia (?) um pouco. Depois, olhava para os lados - e sobretudo para mim, pois já tinha percebido, ou pelo menos pressentido da minha tendência para Mata-Hari da literatura alheia - e reforçava as suas manobras de diversão. Tudo, menos deixar que fosse quem fosse se apoderasse de uma palavrita sequer do seu 'Segredo'. Escusado será dizer que não tinham passado dois segundos sequer até que desvendasse o título da obra que a senhora tanto tentava esconder. O que deu mais ânimo à - parafraseando a Cool Mum num post recente em que esta última citava a Vieira do Mar - cabeleireira intrometida que existe em mim. Mas a minha vizinha não permitiu que decifrasse mais uma vírgula. Queres saber mais? Vai comprar! A Rhonda Byrne agradece.

1/09/2008

Um dia

ainda hei de aprender a preservar-me de certas e determinadas agruras. Agruras, sim. Não me surge vocábulo mais adequado ao sentimento a que me refiro. Se há algo que me irrita na minha pessoa é o facto de deixar que certos assuntos me tirem o sono. Literalmente. Sou aquilo que se chama uma esponja. E, por mais que me auto-eduque, repetindo a mim própria até à hipnose frases como "não te deixarás atingir por veneno alheio", "não sofrerás por quem não vale vinte e cinco tostões em moeda nova" (sim, porque em moeda antiga, sempre vale a relíquia, certo? agora tentem lá converter vinte e cinco tostões em aéreos, a ver o que a coisa dá...), a verdade é que a matéria de que sou feita me torna absolutamente susceptível, qual terra fértil na qual poderá nascer sem ser semeada a planta mais daninha e em dois tempos ocupar todo o espaço, pondo em risco as espécies protegidas mais belas e preciosas que tanto trabalho haviam dado a brotar.
Liberto esta posta na esperança de que os sentimentos desagradáveis e pensamentos carregados de más energias que me têm inundado o campo nestes dias se dissolvam na imensa blogosfera, transitem para o espaço intergaláctico, se transmutem e apenas regressem sob a forma de centelhas multicolores de amor e bem-aventurança.
Inúmeros e incontáveis: se souberem de algum curso que ensine as esponjas a transformar-se em espelhos, avisem a Calamity, tá?..

1/02/2008