O facto de estar a escrever esta posta é provavelmente a evidência cabal da pertinência da conclusão que os meus inúmeros e incontáveis irão tirar após concluírem a leitura da mesma - se é que tal coisa irá mesmo acontecer - , conclusão essa que posso desde já adiantar, poupando-vos assim à maçada de estabelecerem (mais) este duro, porém, estou certa, definitivo diagnóstico a meu respeito: já tem havido internamentos compulsivos em psiquiatria com motivos bem mais frágeis.
Se contudo os meus inúmeros e incontáveis insistem, por teimosia ou curiosidade, em prosseguir a leitura, só me resta, pois, partilhar convosco o que me traz aqui hoje e orar para que o vosso julgamento sobre o meu caso seja justo, porém brando.
O cenário é um consultório médico em prédio dos anos quarenta, de casas amplas, guichet a meio do corredor, porta pesada de madeira à qual foi adaptado um mecanismo automático sonoro, telefone(s) insistente(s), sala de espera ladeada de sofás e cadeiras, mesa redonda e austera ao centro repleta de revistas.Devem ser umas 16h15. Quatro pessoas distribuem-se por três assentos, todos os lados ocupados menos um, onde pontifica o pequeno ecrã em pleno ataque de hiperactividade estéril de segunda à tarde. Quatro pessoas: um homem de meia idade dando o flanco direito à TV; uma senhora rondando a mesma faixa etária sensivelmente à sua frente; enfrentando a caixinha barulhenta as restantes duas pessoas: um rapaz na casa dos vinte (digo eu, que ando cada vez pior nisto de atribuir idades à pessoas) e uma senhora na casa dos restantes ocupantes da sala. Entro, murmuro o boa tarde da praxe, vou direita à mesa das revistas, escolho uma daquelas que só consigo ler nestas ocasiões - para as cuscas, esclareço que se tratava da Máxima, na qual logrei tresler um texto sobre mentiras e sexo após o qual fiquei exactamente na mesma - e sento-me ao lado da senhora só, ficando o supra-citado televisor do meu lado esquerdo. Começo a ler. Ou melhor, começo a tentar ler. Não é fácil. O(s) telefone(s) toca(m) sem parar. A campaínha da porta também vai dando sinal de vida, que isto ou há moralidade ou comem todos. A Praça da Alegria intervalou e os compromissos comerciais estão apostados em rebentar com o volume do aparelho. Mas tudo isto até é suportável. Afinal, trabalhei tanto tempo em redacções. Com televisões ligadas em quatro canais a fazerem concursos de decibéis. Com a colega do cor-de-rosa a resolver questões difíceis (e quão difíceis, deus meu!) em altas vozes (e quão altas, deus meu!) e um ou dois chefes aos berros com um ou dois subordinados e telefones em trance psicadélico e a coisa até que se vai ultrapassando, umas vezes melhor outras pior, é certo, mas, digam-me os inúmeros e incontáveis, haverá ruído mais irritante, mais insuportavelmente desgastante do sistema nervoso central, periférico e latente (pronto, eu sei que tal coisa só deve existir na minha imaginação delirante, mas é só um efeito de estilo, uma mania de adjectivar ad nauseam), do que um bip bip repetitivo e insinuante??? Eu cá acho que não. Sim, é certo que o meu feitio sagitariano cruzado de neurótico herdado do meu querido pai me confere esta característica particularmente irritadiça que os inúmeros e incontáveis tão bem conhecem. Mas dentro da categoria dos barulhinhos especialmente irritantes, existem dois - assim de repente - que me fazem ir aos arames a uma velocidade próxima dos 300 mil km por segundo (para os mais distraídos trata-se da velocidade da luz e não precisam de me agradecer: afinal, todos temos de cumprir a nossa missão e a minha é ajudar a educar as massas. Ah, e antes que alguém se precipite a taxar-me de esta e mais aquela, vou já esclarecendo que não fui eu que disse, foi o teste de numerologia cujo link irei à procura se conseguir terminar a posta a tempo de não ser despedida). Portanto, dois, se bem se lembram: um é aquele plim plom! estridente e que fica a ecoar por meias-horas inteiras, e que ainda por cima nunca vem só, vem sempre repetido, assim: plim plom!, plim plom!, estridente e que fica a ecoar por meias-horas inteiras a tal ponto que uma pessoa já nem sabe se está ainda a ouvir o plim plom! ou se já se trata do próprio eco, que normalmente existe nas retrosarias, lojas de brindes e outras pérolas do comércio tradicional em vias de extinção nas quais para cúmulo os únicos artigos interessantes costumam estar pendurados precisamente ao lado do detector de presenças - pois é disso que falo, sabem, o tal plim plom! e poupo-vos ao resto da descrição -, o que tem habitualmente como resultado que fujo dali ao fim de oito a dez toques antes que desate a gritar furiosamente e o dono da loja - que normalmente é um velhinho adorável - me mande internar sem me deixar terminar de escrever a posta. O outro - estão a acompanhar-me? - é um bip bip repetitivo e insinuante cuja origem podemos até não estar a detectar mas que tem fortíssimas probabilidades de provir do telemóvel que o rapaz na casa dos vinte (digo eu, que ando cada vez pior nisto de atribuir idades à pessoas) dedilha entusiasmadamente enquanto a senhora a seu lado ronca suavemente, de cabeça levemente inclinada para trás e sem pestanejar.
(Para quem possa eventualmente ter ido à casa de banho ou atendido um telefone entretanto, esclareço que já saí da redacção e da loja de lavoures e estou de regresso à sala de espera do consultório médico)
Olho para ele franzindo o sobrolho (pelo menos, penso que franzo, que não tenho ali nenhum espelho à mão). O tipo não se manca e continua a teclar como se não houvesse amanhã. Um a um, percorro com o olhar os outros ocupantes da sala. Ninguém parece estar a reparar no barulhinho exasperante que escapa - agora estou certa disso - da maquininha insuportável do rapaz na casa dos vinte (digo eu, que ando cada vez pior nisto de atribuir idades à pessoas) que talvez não tenha exactamente a idade que eu penso mas que tem certamente idade para ter juízo. Bip bip. Ah, se fosse meu filho... Tento concentrar-me na leitura do fascinante artigo. Bip bip. Sabiam que três em cada quatro pessoas mente a respeito do número de parceiros sexuais? Em boa verdade vos digo, tenho praí uns... Bip bip. OK, pronto. Falamos nisso noutra altura. Bip bip. Até porque estou prestes a iniciar uma espiral de violência. Aviso já que sou particularmente atreita a ataques de nervos Ainda para mais nesta altura do mês. Bip bip. E vou bem lançada. Já estou a bufar. Como é possível que ninguém diga nada? Será que? Bip bip. Começo a virar ruidosamente as páginas da revista. Nada. O senhor da frente - o tal do flanco direito - olha para mim enquanto fixo significativamente o rapaz na casa dos vinte (digo eu, que ando cada vez pior nisto de atribuir idades à pessoas). Não parece estar a ouvir o bip bip que cada vez penetra mais fundo nos meus tímpanos, nos meus dentes, nas minhas unhas, na espinal-medula... Bip bip. A senhora - que, pensando bem até é capaz de ser mãe dele - continua a ressonar serenamente, cabeça tombada - um tudo nada embora - sem que dela emane o mínimo sinal de incómodo. Ao meu lado, a outra personagem de meia-idade (reparo agora que, quando digo de meia-idade, me estou a referir a uma pessoa entre os 50 e os 65) também não parece de perto nem de longe perturbada com o bip bip que me está progressiva mas insidiosamente a conduzir a um ponto de não-retorno. Digo? Não digo. Bip bip. Pronto. É demais. Vou respirar fundo, levantar-me, e perguntar, educada, mas firmemente, ao rapaz se não se importa de cortar o pio ao telefone. Basta tirar o som das teclas. Qualquer miúdo de 11 anos sabe isso. O meu sabe. Bip bip. Mas o paquiderme que habita as profundezas do meu ser tenta refrear os meus ânimos já deveras exaltados. Murmura (quase tão ruidosamente quanto o desesperante bip bip): "Tu acalma-te, Calamitosa. Tu tem tento na língua. Tu não te passes antes do tempo que tu perdes a razão e ós pois quem fica mal vista és tu. Tu observa lá cuidadosamente à tua volta a ver se mais nada estará a causar tão enervante bipar". Respiro fundo. O meu telefone toca. Levanto-me e vou atender lá fora. Quando regresso, o meu anterior lugar está ocupado. Sento-me do lado oposto. Pego noutra revista. Há alguma movimentação na sala enquanto o bip bip perdura como um interminável ruído de fundo. Duas raparigas novas entram e partilham o comprido banco comigo e com o senhor de meia-idade que afinal já terá ultrapassado a meia e que é chamado pela recepcionista. Quando volto a consciencializar-me do bip bip já passaram uns minutos. Levanto novamente os olhos e qual não é o meu espanto quando me apercebo que agora, quem tem o telemóvel infernal nas mãos é a senhora que outrora roncava discretamente e agora se ocupa a manejar a maquineta do demo sem lampejo de pudor!!! Não posso acreditar. Agora tenho a certeza. Trata-se definitivamente da mãe do rapaz na casa dos vinte (digo eu, que ando cada vez pior nisto de atribuir idades à pessoas). Como haveria de o rapaz ter qualquer sombra de boas-maneiras quando a própria progenitora se dedica à actividade frenética do teclanço barulhento sem qualquer contemplação??? O mundo está perdido. Ainda bem que não disse nada. Está-se mesmo a ver o género. A coisa teria certamente dado peixeirada. Bip bip. Ah, meus deuses, segurem-me, que eu vou-me a eles. Pego na terceira revista.
E é então que os acontecimentos se precipitam. O rapaz na casa dos vinte (digo eu, que ando cada vez pior nisto de atribuir idades à pessoas) já não se encontra na sala, a senhora que outrora roncava discretamente e seguidamente se ocupava a manejar a maquineta do demo deixou de jogar, não existe vivalma em toda a sala que possa estar a provocar o bip bip do meu descontentamento e no entanto ele continua. Bip Bip. É a minha vez de ser atendida. Entro na sala do médico. Sento-me, enquanto o senhor doutor foi lavar as mãos. A porta aberta dá para a entrada do consultório. Maquinetas em todo o lado. Dentro da sala, o ecógrafo. À entrada, o mecanismo que faz abrir a porta. Entre o corredor e a divisão onde me encontro, outro aparelhómetro. Todos eles piscam e todos eles são susceptíveis de estar a provocar o bip bip desde a minha chegada. Desde antes da minha chegada. E assim continuará após a minha partida. É assim todos os dias, provavelmente. Não há telemóvel, não há rapaz mal educado, não há mãe desnaturada, não há pacientes indiferentes. O que há é uma calamitosa louca, desvairada, e que um paquiderme pachorrento acabou de salvar de uma situação deveras embaraçosa. Quem disse que ter um elefante no lugar do grilo falante é uma tremenda maçada? Bip Bip.
4/28/2009
É grave, Senhor Doutor?
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19 comentários:
Se tu soubesses, m'lher, a IRRITAÇÃO q esta posta me provocou. :D
LOOOL! Viva o paquiderme!
Beijinhos.
Eu fiquei zonza só ler está posta!!
:SS
Logo à noite venho cá ler com calma tá?
bjkas
Só li metade que tenho que ir buscar o xavalo.
Logo volto.
Bip bip
olha...eu n sei c q psi's é q tu te dás [:P] mas eu cá mantinha essa hiper-sensibilidd auditiva [é cm se pode chamar à coisa] e selectiva, q costumam dar jeito qd temos q [n] ouvir certas vozes q [n] chegam ao céu.
bj meu
ps: já do quartinho, diz q há uns q n têm bip's, nem janelas, nem nada....tens a certeza q n queres reconsiderar? :P
CJ, diz-me, tu ainda consegues ir ao cinema?
É que se consegues, estás bem melhor que eu! E se eu gosto de cinema! Mas o sofrimento... As pipocas... O chrrchhrchhr da palhinha no copo da c.cola... Os sussurros... O barulho do saco das b.fritas... Só de pensar (sinto-me verde de repente, e se me transformo para aí no Hulk e me dão uma carga de pancada?...)
(Que parecia que me estava a ver ao espelho! E tem dias em que isso me dá na rua, logo de mnhã. Que se estoira, estoira-se garanto...)
:)
Diagnóstico: estás fantástica, só assim se justifica tal posta(tão gira) com uma coisa tão trivial como um bip bip, ou um plim plom :))
bjkas
Eu ainda não consegui perceber o que gosto mais em ti... se das tuas metáforas ou das tuas comparações. Se da capacidade de te perderes nos detalhes, conseguindo sempre retomar o fio à meada, ou da realidade das cenas.
Definitivamente, és a minha obsessiva-compulsiva preferida.
Foda-se. Tb fiquei irritada. E os bip bip põem-me enlouquecida. Um dia ainda assassino alguém à conta disso. A isso e a música de que não gosto e que, desde que assaltaram pela décima vez o café onde vou e roubaram a televisão, tyoca música de DISCOTECA nas alturas. Há umas tardes, estive para esgadanhar a miúda que me estava a servir. TODOS os clientes resmungavam e a gaja não tirou aquilo. Quando me começo a enervar, começo a esticar o cabelo com as mãos. Quando o meu marido chegou para o nosso café de fim de tarde, o meu cabelo se não estava liso, andava muito próximo.
E subscrevo a Loiríssima :D
Tu és demais. De um bip-bip saí-te uma prosa espectacular!!!
Cristina
Postas como ninguém!!
Olha amei, fiquei presa até ao fim, sem bip bip, mas com um chato que não se calava mesmo aqui ao meu lado!!
bjs
Tu és brilhante!
Estive contigo em cada bip bip, com um camadão de nervos só de pensar no miudo, na mãe que roncava LOL
Os barulhinhos também me enlouquecem. O meu colega da secretária ao lado tem o telemovel no silêncio, mas a vibrar, e a bela da namorada leva o dia a mandar mensagens, e eu de cada vez que sinto aquilo [o telemovel pois claro] a tocar fico com esse nervoso que só me apetece gritar-lhe e chamar-lhe estupido mil vezes!
Como vês, há muitas mais como tu ;)
Eu acho que se te apetecer escrever sobre a importância do furador num escritório, consegues ainda assim prender os inumeros à tua escrita.
Beijo grande!
Bip bip, plim plom, bip bip, plim plom
hihihihi
Ups... E fazer viagens de comboio inteiras, longas, do tempo em que não havia penduralares, como barulhinhos desses, constantes, indecifráveis... Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhh
Juntas na sensibilidade auditiva. Quem diria?
(Sabes que uso tampões dos ouvidos para dormir em silêncio absoluto?... Ah, pois é!)
Escreves sempre assim :)))
Beijos
oh Calamity eu tenho trabalho para acabar ainda hoje!!!!! caramba!!!! e fiquei aqui vidrada neste texto como se não tivese nadinha o que fazer!!!!
:)
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