11/03/2008

O lápis azul ataca de novo


Julgavam os inúmeros e incontáveis viver em democracia?
Imaginavam que o facto de andarmos todos para aqui a mandar bitaites mais ou menos quando e como queremos e nos apetece significava liberdade de expressão?
Que o lápis azul era coisa dos tempos da outra senhora? Ou que esta e aquele, se calhar, como até já se ouviu dizer por aí, à semelhança do holocausto, nunca existiram e foram apenas uma invenção de desordeiros mal-intencionados, desses que em vez de trabalhar para a coesão nacional preferem semear a discórdia e a má língua?
Pois bem, receio ter de os contrariar, senhores. O lápis azul está de volta, bem afiado e em grande estilo. Já há uns tempos que não ouvíamos falar nele - bom, mas isso não é de admirar. Não é essa precisamente uma das características do dito? Morde pela calada, por assim dizer. Embora de vez em quando cheguem até nós ecos da sua sobrevivência, firme e hirto, como dizia o outro - Desde que, há um ano e tal, aquela directora do Centro de Saúde de Vieira do Minho foi exonerada do cargo por não ter mandado retirar o tal cartaz que dizia mal do tal ministro que entretanto foi destituído mas não foi nada porque o país inteiro estava contra ele, foi porque o senhor tinha umas questões pessoais para resolver e até tinha já pedido ao nosso primeiro... enfim, isso agora não interessa nada! Um mês antes tinha sido o professor da anedota. (Cuidado, inúmeros e incontáveis. Cuidado. Não leiam em voz alta uma piadinha que anda aí a circular na net sobre nosso primeiro e o computador que tem nome de circum-navegador. Se a receberem não a repassem! Depois não digam que não vos avisei!) Agora é a enfermeira da linha 24. Atreveu-se a escrever uma carta à ministra que por acaso até tutela lá o sítio onde ela trabalha. Um local onde, diga-se de passagem, "quase todos" os 360 funcionários (ao serviço do Ministério da Saúde, recorde-se) estão a recibos verdes, mas claro está, trata-se tão-somente de uma insignificante coincidência. Dizia eu que a tal da enfermeira teve o desplante, vejam lá, de tornar públicas as suas (e as de mais oito supervisoras, as maganas!) preocupações com aquilo que elas tiveram o distinto descaramento de classificar como um "caos organizativo"! Como se qualquer organismo tutelado pelo Estado pudesse aproximar-se sequer de uma ligeira desarrumação passageira. Claro que vai ser despedida! Obviamente demitida! Onde é que já se viu?
Inúmeros e incontáveis, quem vos avisa, vossa amiga é: mantenham-se bem caladinhos. Aliás, devo dizer que até estou surpreendida que estas notícias tenham vindo a lume. O comportamento da maioria dos meus colegas, outrora camaradas - para quem possa ignorá-lo, ainda há muito poucos anos, quando entrávamos pelas primeiras vezes numa redacção, éramos de imediato advertidos que não deveríamos tratar os companheiros de profissão por colegas; "colegas são as putas", rezava a velha máxima que iniciara escribas ao longo dos anos da ditadura - cada vez menos difere do das avestruzes. Não é preciso fazer um desenho, pois não?
Aliás, a política na redacções - e na maior parte dos outros locais de trabalho - é cada vez mais uma espécie de lápis azul incluso. Não mexer na merda, porque cheira mal. Porque suja as mãos. Porque temos emprego. Porque não temos - mais uma razão, pois então! - Trabalhamos a recibos verdes e receamos pelo nosso futuro e pelo dos nossos filhos. Os tais que ainda não nasceram, nem sabemos se os iremos trazer a este mundo estragado. Mas foram os outros que estragaram, por isso nós não vamos mexer. Vamos ficar aqui bem caladinhos. A fazer o que nos mandam, pois pagam-nos para isto. É um favor que nos fazem, como toda a gente sabe: pagarem-nos para trabalharmos, pois há quem pague para poder fazê-lo. Temos sorte, não? E então? Ainda vamos provocar? Não senhor. Vamos mas é ficar sossegadinhos no nosso canto, que isto não é nada connosco. Tá tudo tão bem, tão calminho.
Hoje não precisamos de lápis azul. Temos recibos verdes. O lápis azul já vem programado nos nossos cérebros. Escrevemos o que nos mandam e não vamos mais além. O lápis azul são as teclas que nunca digitaremos. Pois se ninguém nos pediu nada. Por que diabo o faríamos? Fiquemos quietos e caladinhos. E tenhamos cuidado com o que lemos, dizemos e ouvimos. Façamo-lo em surdina. Acautelemo-nos também com os blogues, esses antros de pouca-vergonha, asseguremo-nos do seu total e absoluto anonimato e congratulemo-nos por a administração ainda ser (relativamente) anafanética (aproveitemos pois este espacinho e prevariquemos o mais javardamente possível, à boa maneira de um recluso em dia de precária, que a ilusão de liberdade dura pouco mas dá uma tesão do caraças!), pois breve breve, estaremos a responder no DIAP pelas nossas postas mais atrevidas. E quiçá pelas outras também...

PS (Salvo seja!!): Em breve, novidades...

6 comentários:

Luz de Estrelas disse...

1- "Ai não queres trabalhjar até às tantas todos os dias, porque tens família? Se calhar estás na profissão errada".

2- "Olha, o outro foi para a direcção com exigências, puseram-no à peça".

3- "Anda lá um gajo a contar as peças dos avençados. Eles pensam, 1500 euros por dez notícias, mais vale pô-lo à peça?".

4- "Encostaram-na à parede, saía dos quadros e ganhava à peça. Ele negou, mas não fo para Tribunal. Já viste a imagem com que ela ia ficar no mercado?".

5- "É preciso esgaravatar, fazer reportagens, quem desanimar está lixado. Se não querem ganhar mal e ser escravos, há mais quem queira".

6- "Hoje em dia nem qualidade querem, o que importa é a página cheia".

8- "O XPTO anda revoltado, cortaram-lhe nos valores das peças cerca de 20%. E prejudica-me a mim, editor? Se está descontente, que saia".

9- "Engraçado, a classe está sempre a denunciar ilegalidades e explorações. Mas não se defende a si mesma".

CJ, muito a sério, não consigo dizer mais do citar as brarbaridades que tenho ouvido.

Rita Camões disse...

Luz o "há mais quem queira", ou "para quem não quer há muito", ou ainda "queres, queres, não queres a porta da rua é a serventia da casa", são as frases que mais tenho ouvido nos últimos tempos. Cj ai de quem se atreva a contariar o lápis e tente contestar ou até mesmo reivindicar algo que ache que tem direito, porque leva logo com uma pérola daquelas que citei, e fica arrumadinho...
Bjkas

Cristina disse...

Não sabia que estávamos assim! Que cena!

Cristina

shark disse...

Brilhante é isto.
Ganda post!

Cool Mum disse...

uma posta destas devia ser espalhada ao vento...

O Manuel do Jornalismo disse...

ui, ui, ui. A censura actualmente pinta com lápis de todas as cores