Capítulo 1 – As criadas das nossas avós
Chamavam-se Emília ou Judite ou simplesmente Maria. Quando se falava delas eram referidas como as criadas e não havia mal nisso. Chamavam os nossos pais “Menino José Manuel” e as nossas avós “Minha Senhora”. Não tinham idade e já estavam em Lisboa há tanto tempo que nem se lembravam do nome da terra de onde vinham. Usavam lenço na cabeça, bigode e pêlos nas pernas. Dormiam num quartinho que existia em todas as casas ao lado da cozinha e acordavam antes de toda a gente para ir ao leite e ao pão e às 7 da manhã já estavam a arranjar o pequeno-almoço da família inteira. À noite, só recolhiam depois de lavada e arrumada a loiça do jantar. Decidiam e confeccionavam as refeições, sempre de acordo com as suas senhoras e não havia prato ou sobremesa que não soubessem fazer. Depois de lavada e arrumada a loiça do almoço, sentavam-se a fazer naperons de croché e botinhas para o enxoval dos netos da patroa. Andavam atrás de nós para ter a certeza de que comíamos os papos-secos com manteiga (flora) e açúcar que nos davam para a merenda depois de nos irem buscar à escola (como é que nós conseguíamos gostar daquilo???). Falavam e gritavam muito alto, e, se nos portássemos mal, tinham ordem para nos puxar as orelhas, a qual levavam à letra. Não sabiam ler nem escrever mas dominavam todos os conhecimentos necessários à administração de uma casa e nunca se enganavam nas contas nem se esqueciam de comprar o pão. Lavavam a escada do prédio e o chão da cozinha de gatas e ‘desarredavam’ os móveis de madeira maciça à força de braços para limpar energicamente o pó que se acumulava por detrás. Tinham as cozinhas rigorosamente impecáveis e se caísse pinga de gordura em cima do fogão limpavam-na com a unha. Sabiam distinguir uma peça de roupa suja de uma limpa e não era preciso dizer-lhes para tratarem da saúde ao conteúdo da tulha, que geriam. Lavavam no tanque, determinadamente, com sabão azul e branco. E não havia nódoa que lhes resistisse. Sabiam que a roupa branca se estende ao sol e a de cor à sombra e, mesmo que não tivessem grandes cuidados em evitar vincá-la quando a estendiam, não havia problemas pois arranjavam sempre um espaço na sua agenda para a engomar. E, evidentemente, arrumavam-na no seu lugar. Seria de todo impossível para elas confundir a roupa de uma mulher de 39 anos com a do seu filho de 11, por mais parecidas que pudessem ser (Sim, eu sei que nessa altura era mais fácil distinguir, mas, convenhamos, sweat-shirts XL a dizer ‘Boarder’?!). Sabiam igualmente detectar quando algo estava roto ou descosido e não era preciso dizer nada. Remendavam tudo, muitas vezes sem que sequer o dono da peça em questão se tivesse sequer dado conta do buraco. Também não era preciso explicar-lhes que a sujidade se acumula debaixo das camas e deve ser limpa, nem pedir-lhes que, por especial favor, deslocassem os objectos de cima dos balcões quando os limpavam. Sabiam sempre quando era preciso mudar as roupas das camas e as toalhas nas casas-de-banho.
Chegada a primavera, subiam para cima dos bancos e dos escadotes e lavavam os vidros por dentro e por fora, arrecadavam as mantas e os tapetes, limpavam as teias de aranha da despensa e dos tectos, arejavam todos os cantinhos da casa, tiravam a roupa de verão dos malões onde esta se encontrava, lavavam-na, estendiam-na, engomavam-na criteriosamente e nunca tinham o serviço atrasado. Todos os dias variam e lavavam o chão com sabão azul e branco e quinzenalmente enceravam as madeiras. Nesses dias, expulsavam-nos da sala, que se chamava casa-de-jantar , dando-nos palmadas nos rabos ou vassouradas na barriga das pernas. Não tinham vida própria e eram felizes assim. Ao domingo saiam às três da tarde. De inverno, iam à matinée do Tivoli ou do Paris e quando estava sol iam ao jardim da Estrela dar pão seco aos patinhos e fazer renda nos bancos. Sem esquecer, claro, a missa das seis. No regresso traziam caramelos “para os meninos”. Quando nos portávamos bem com elas, deixavam-nos ir brincar com os vizinhos mesmo que os nossos pais nos tivessem posto de castigo. Faziam parte da família e choravam com as nossas penas, emocionavam-se com as nossas alegrias e estavam presentes nos aniversários, baptizados e casamentos. Quando um dia ficavam demasiado velhas, regressavam à terra não sem antes ter ido lá buscar a sobrinha de quinze anos que se chamava Isabel ou Maria do Céu e a quem antes de partir ensinavam com desvelo todo o serviço da casa.
(próximo capítulo: As empregadas dos nossos pais)