1/26/2009

Portugal, 2009

48 horas para cozinhar uma posta é muito tempo. Nem que fosse de bacalhau especial. Esta não. A ver com o bacalhau só o facto de se referir a factos que ocorrem neste triste paraíso à beira-mar plantado e de especial o tamanho da estupidez, da ignorância, da maldade. Sim, porque em todo o acto de discriminação, não me venham com tangas, tem de existir um quê de maldade, uma pontinha do inquisidor que dorme no fundinho do ser mas que cabe a todos nós domar, digo eu de que, mas é verdade que eu sou como a tia do outro e tenho a mania de dizer coisas.

Pois 48 horas para cozinhar uma posta é muito tempo mas há coisas que se nos atravessam na garganta e a malta não sabe muito bem como abordar, como trazer ao de cima, de tão boquiabertos ficamos quando somos confrontados com elas.

Imagine-se uma clínica dentária de renome em Lisboa, capital de Portugal, país-membro da União Europeia desde 1986 (se não me falha a memória), país membro da ONU, país signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, país que foi o primeiro do mundo a abolir a escravatura e a pena de morte, país que se diz de brandos costumes, país este onde vivo e que amo, em 2009, final da primeira década do séc. XXI, um quarto de século (e mais uns trocos) depois de isolado o VIH, 125 anos depois de Pasteur, quinhentos anos depois da inquisição.

Imagine-se, dizia, uma clínica dentária aqui e agora que descobre que um dos seus utentes está in(a)fectado por uma doença crónica que é (comprovadamente) apenas transmissível por via sanguínea. Imagine-se que essa clínica, onde é suposto que todo o material utilizado seja amplamente esterilizado e, obviamente, todas as práticas e rotinas sejam de molde a proteger técnicos e utentes da mais leve possibilidade de serem contaminados com seja que doença for, e por maioria de razão, de estarem em contacto com vírus como o HIV (transmissão sanguínea e sexual) e o HCV (transmissão sanguínea).

Para quem possa eventualmente ignorá-lo, calcula-se que o HCV (Vírus da Hepatite C) afecta actualmente cerca de 1,5% da população portuguesa, sem que a grande maioria (90%) dos portadores tenha desse facto sequer a mais leve suspeita. Feitas as contas dá qualquer coisa como 150 mil pessoas. Nada que se compare, nem de longe nem de perto, com a incidência da SIDA. É por isso considerada pelos médicos como "A epidemia silenciosa". Mas adiante. Há cerca de 10/15 anos que se sabe com toda a certeza que o vírus da Hepatite C apenas é transmissível por via sanguínea, sendo que os raríssimos casos em que há suspeita de outros modos de transmissão dizem respeito a casos de eventual contaminação por via sexual (quem garante que nos casos em questão não existiam feridas, mesmo microscópicas?) ou de mãe para filho (mais uma vez nestes casos há uma grande probabilidade de ter havido contacto entre o sangue da mãe e o do bebé, quanto mais não seja no momento do parto). À diferença das mães seropositivas para o HIV, as que são portadoras do HCV são incentivadas pelos médicos a amamentar os seus filhos, já que se considera que os benefícios desse acto são infinitamente superiores aos (nunca demonstrados) riscos de transmissão do vírus através do leite (excluindo-se, uma vez mais, a existência de feridas ou gretas no mamilo que pudessem pôr em causa a segurança da amamentação).

Imagine-se, pois, uma clínica dentária aqui e agora, uma clínica dentária privada mas que possui acordos com várias entidades que lhe conferem desse modo credibilidade, uma clínica dentária de dimensão considerável, uma clínica dentária que tem um serviço de urgências, tornando-se assim muito concorrida . Imagine-se que esta clinica, ao descobrir que um dos seus utentes está in(a)fectado pelo vírus da Hepatite C (mas podia ser HIV), lhe transmite a informação de que, dali em diante, terá de ser atendido depois das 19h00, no "final do expediente". Imagine-se que este utente pede explicações para tal medida, suspeitando que se trate de uma política discriminatória, logo inaceitável. Imagine-se que lhe é dada uma desculpa totalmente esfarrapada que invoca entre outros disparates desprovidos de qualquer bom-senso a "ausência de esterilização do ar" e enormidades do género.

Imagine-se ainda que o médico dentista que fala em nome da clínica acrescenta com sobranceria que ali, naquela clínica, ninguém se nega a atender clientes infectados com aqueles vírus, à diferença de outros "colegas", que o fazem. Imagine-se que o utente, espantado com tal revelação, a questiona e que lhe é respondido que "um médico-dentista não é obrigado a atender ninguém, muito menos em clínica privada" e que, confrontado com as questões inerentes à deontologia médica, responde que "os médicos-dentistas não são médicos, nós não estamos sujeitos ao juramento de Hipócrates" (!!!).

Pois bem, inúmeros e incontáveis, não precisais de violentar a vossa preciosa imaginação em exercícios tão complexos como conceber episódios desta natureza. A clínica dentária existe e este caso ocorreu na semana passada. Em 2009, em Lisboa, em Portugal . No tal país. No país onde se isolam parturientes portadoras dos vírus acima referidos sem qualquer justificação plausível. Violando o princípio da igualdade, um dos mais elementares, garantido pela Constituição da República e pela tal Declaração Universal (ultrapassada, diariamente, pelos acontecimentos, em todo o mundo). Violando o direito ao anonimato e à privacidade dos doentes, já que a condição de positivos é escarrapachada nos quadros clínicos usados pelo pessoal de enfermagem os quais se encontram nos corredores das enfermarias à vista de todos os que por ali passam. No país onde, em Dezembro de 2005, a vossa Calamity foi deixada 14 horas depois de parir dentro da mesma sala onde tinha feito a dilatação pois não havia quartos na neotologia embora existisse um bloco de partos novo em folha por estrear desde Março do ano anterior o que ainda não ocorrera por falta de material. Onde a vossa Calamity teve de berrar com uma enfermeira-chefe para que lhe fosse dado o direito a receber um par de cuecas da sua mala para que, quando se levantasse para ir à casa-de-banho (o que ocorre algumas vezes quando se acabou de ter um filho) não tivesse de andar de cu para o ar e penso entre as pernas em frente das visitas da sua companheira de quarto, pois o hospital não dispunha de cuecas descartáveis e não deixava entrar objectos estranhos na sala de dilatação onde ambas se encontravam com os seus bebés recém-nascidos por falta de quartos. O mesmo país onde se deixam morrer doentes em estado terminal à hora das visitas à frente de crianças que visitam o doente da cama ao lado. O mesmo país onde pessoas com gripe, tuberculose, pneumonia, herpes labial e uma inifinidade indiscrível de doenças infecto-contagiosas não são protegidas nem submetidas às mais elementares regras de prevenção para que não contagiem terceiros nos centros de saúde, hospitais e nas tais clínicas dentárias onde se pratica discriminação indiscriminada e criminosa.

O país onde, diariamente, a realidade ultrapassa a ficção.


13 comentários:

Unknown disse...

Queres que te diga alguma coisa? nao me surpreende, nem ai nem aqui, o que nao quer dizer que me cale e aceite.
Os meus meninos tambem nao podem ir a qualquer dentista...
Mas isso sao outras lutas.
E mais nao digo!
Beijos

Cool Mum disse...

não me surpreende, embora me desgoste

Luz de Estrelas disse...

Portugal, 1808?

A querida que me dá uma mãozinha lá em casa tem isso. Já não bastava a dita cuja da doença, ainda tem de se ser discriminado.

Rita Camões disse...

e tantas, tantas outras histórias iguais ou parecidas ouvimos todos os dias:(


bjkas

Tita Dom disse...

Preocupa-me os nossos filhos... os ensinamentos que os fazem os homens de amanha...

M disse...

mais depressa se descobrirão as curas para as doenças, q para os preconceitos [ou estupidez??]

bj meu

ps: apesar da molhenga, é uma boa posta ;)

Anónimo disse...

É triste! Muito triste mesmo! "tem de existir um quê de maldade". Pois tem.Beijinhos Cê Jane!
(Mas a cena da "cueca" está muito bem imaginada! Rapariga, dedica-te ao cinema. Não leves a mal, mas há um Woody Allen em ti à espera de se revelar neste paraíso à beira-mar plantado!!!!)
Como é que adivinhaste que a cena dos berlindes se tinha passado comigo?! lol Aquele menino que não se chama João é mesmo a pureza em pessoa. Vai doer-lhe esa pureza quando crescer! madalena

AEnima disse...

Um pais em que, depois do caso do cozinheiro com HIV, ate desanima recorrer 'a justica.

Anónimo disse...

Mada, a cena da cueca não foi imaginada. Todas as cenas narradas aconteceram mesmo. E fora as q não contei. É o que te digo: a realidade ultrapassa a ficção.
Qt à cena dos berlindes... Ora, elementar, cara Mada... :-))

Loira disse...

Pois, não me surpreende... Uma professora de ciências uma vez disse-me que se eu quisesse colocar o meu filho numa IPSS tinha de me mentalizar que ele ia conviver com meninos com HIV e hepatite... GOD, uma professora de ciências!!! Isto é o reflexo do nosso país... qd um médico e uma professora de ciências têm este preconceito, como será o resto das pessoas?
beijo

Amélia do Benjamim disse...

Os médicos dentistas, ao contrário dos estomatologias, não fazem a carreira hospitalar, só privada, logo, reservam-se ao direito de admissão (!), como se de uma coisa comercial se tratasse, pronto. E vai pela mão da 'vontade' do povo: e o povo tem medo. O povo não quer lá gente dessa misturada; Só que o povo não é estúpido. É-me difícil imaginar um profissional de saúde a dizer essas barbaridades. Com tanta falta de Educação olha, é mais um que devia entregar o certificado da licenciatura em medicina à faculdade que lho deu.
Beijo

S.A. disse...

(ia dizer qualquer coisa como: almoçar ás 17h15.. já tinha morrido! - agora acho q já nem digo nada...)

disse...

Imagine-se que eu vinha aqui à procura de uma posta sobre a crise de que fala a Luz, e chego aqui deparo-me com esta maravilhosa posta sobre a falta de valores humanos!

Nem tenho palavras, a não ser asneiras :S

Beijo beijo